quinta-feira, 24 de setembro de 2009

A iniquidade suplantará o amor?



Vivemos tempos novos, feitos de prioridades completamente distintas de épocas passadas. O mundo, acelerado como é, imprime em cada pessoa, com maior incidência na cultura ocidental, uma incontrolável necessidade da urgência e do já. De maneira que, momentos que deviam ser sorvidos com profunda calma e serenidade, estes são postos de lado para que o imediato e o ligeiro sejam as ocasiões mais adequadas ao estilo de vida em trânsito que vivemos. Como resultado direto e implacável dessa realidade, as pessoas não têm tempo para construir e cultivar amizades com raízes profundas. Com efeito, suas amizades se estabelecem pelo caráter funcional com o qual medem os outros (qual serventia as pessoas tem?). Entretanto, tão logo essa funcionalidade se esgote, a amizade, o casamento, o relacionamento, seja lá em qual esfera for, ela se desfaz como uma nuvem de fumaça dispersada pelo vento. Não mais se constrói amizades pela amizade em si, mas pela habilidade que o outro pode oferecer. Esgotando tal habilidade, tornando-se dispensável, a amizade não possui sentido e por isso é sacrificada ao deus do nada e do sem sentido.
Não se percebe mais a preocupação com o estado do outro. A cena do hospedeiro, descrita no salmos 23, dificilmente poderia fazer parte de nosso momento epocal. Ninguém quer procurar, muito menos receber o outro com comensalidade e gentileza. Receber e procurar outro, assim como nesse famoso salmo, é assumir o outro e sua condição. É fazer como o samaritano que parou e acolheu e não como os sacerdotes e levitas, podendo ser qualquer um com patentes eclesiásticas ou não, que prefere deixar de lado e não assumir a questão, fazendo-se de desavisado ou desapercebido.
É de triste constatação perceber que aqueles laços de ternura que deviam fazer manto comum a cada um e a todos da comunidade de fé, estão desfiados pela indiferença e até mesmo pelo desprezo. O amor, sentimento segundo o qual nos tornamos devedores de cada um, tornou-se liquido, liquidou-se na promoção das futilidades que construímos no lugar da exigência de amarmos uns aos outros. E quando confrontados com esse discurso, sempre temos uma boa desculpa, até mesmo revestida de um argumento com tons “divinos” para sustentar o não-amor e a distância.
Deveríamos, sim!, beber da presença do outro como dom de si ofertado a cada um, de maneira que construamos laços espirituais. Isso mesmo!, espirituais. O amor é o infinito que é dado ao finito (Paul Tillich). É aquele liame, aquela ligação sob a qual nos tornamos iguais ao nosso Cristo. E quando isso não ocorre, quando o sol se põem e não levanta mais, inaugurando um tempo de entenebrecimento, não sobra nada a não ser uma religião que perdeu seu sentido e seu eixo fundamental. Quando o Cristo, que é a materialização do amor de Deus, não for mais encontrado entre nós como partilha desinteressada, amizades como expressão do amor, laços de compromisso que constroem o manto da presença comum e da alegria dessa presença, do perdão que lança na baía do esquecimento os incidentes passados, confessamos um Cristo que na verdade nunca vimos, que só ouvimos falar. Nos tornamos incapazes de reconhecer a presença do outro pelo encontro verdadeiro.
O que sobra de uma fé e de uma religião que prescinde do amor e de sua teia de expressões? Não se reduziria apenas a ritos, atitudes mecânicas e vazias? Não ficaria marcada pelo caráter burocrático-jurídico com o qual nos relacionamos em nossos encontros? Não seria, como nos profetas, denunciada pelo abandono da justiça ( entenda-se por injustiça a não operação do amor da compaixão), como prática do amor?
Já fora denunciado pelos profetas: um culto sem amor não é culto; oração sem amor é rito; cânticos sem amor são vazios; ofertas sem amor são dispensáveis; corpo de Cristo sem amor é Frankeinstein.
Mas creio em Cristo e creio em Seu corpo vivo. Naqueles que não se prostraram à iniqüidade do desamor e da indiferença. Estes serão chamamos Sua Igreja.
Glauco Kaizer

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