sexta-feira, 2 de outubro de 2009

A fé do anticristo



Uma grande multidão o seguia. O fascínio que despertava , tendo em conta a opulência e as palavras fáceis que lhe saltavam da boca, atraía multidões. Além disso, vestia-se muito bem. Suas roupas lembravam um imponente chefe de Estado e incontáveis eram os seus adereços e ornamentos. Todos queriam ouvi-lo...ou melhor...todos queriam ser como ele. Muitos dariam alguns bons anos de suas vidas pelo pífio momento de serem iguais a ele. Afinal de contas, sua pomposa imagem e as coisas que dizia,da forma como dizia, pareciam simples e muito fáceis de acontecer.
Um dia qualquer, depois de caminharem muitos quilômetros, aquela multidão, cansada e faminta, assenta-se diante dele para mais uma vez ouvi-lo. As faces daqueles homens e mulheres estavam fincadas pelo cansaço e pela fome de sentido e também de pão. Não traziam consigo nada além de um bom punhado de idolatria e de desprezo por si mesmos.
Então aquele homem, vendo aquela grande multidão prostrada diante de seus pés, seduz-se pela oportunidade de, mais uma vez, ouvir sua voz ecoando na amplidão daqueles prados, que um dia já foram verdejantes, mas que coincidentemente ou não a sua presença ali, transfiguraram-se num tom fulvo e sombrio. Sobretudo, lhe fazia muito bem perceber os semblantes reverenciosos a cada palavra e a cada gesto proferidos.
Depois de falar-lhes exaustivamente a respeito de nada que mereça ser lembrado, alguém grita do meio daquela turba:
___ Espírito das belas palavras, estamos famintos! Fome: a mais básica e trágica de todas as necessidades que os homens possuem. No entanto, a mais desprezada por aqueles que possuem o poder de aplacá-la.
Alguém daquela multidão repreende o homem:
___ Não o importune com amenidades. Não vê que incomodas o mestre? O espírito das muitas maravilhas só se ocupa do magnífico!
Aquele homem não levou em conta a reprimenda e novamente lança seu clamor.
___ Grande espírito, não nos ouviu? Tem misericórdia de nós. Estamos com fome! E o homem seguiu dizendo:
___ Não comemos nada a muito tempo. Nós, nossos filhos e filhas já nem lembramos o gosto da última coisa que comemos. Primeiro paramos de nos alimentar de amor. Não havia mais amor para comermos. O que tínhamos fomos devorando vertiginosamente até que não nos sobrou mais nada. E infelizmente nosso solo não tem vingado essa semente. Ele está muito fraco. Logo depois paramos de nos alimentar de esperança. Assim como no caso amor, o pouco que possuíamos de esperança se acabou. Ela florescia com o amor, e com o fim deste, da esperança também não restou nada senão algumas poucas lembranças. Só uma única coisa se nos restou, a propósito, muito pouca: algum punhado de fé que deixamos guardada, muito bem escondida. Só a usaremos em caso extremo: para nós e nossos filhos comermos e depois morrermos. Estamos aqui justamente para que o senhor, oh! espírito dos artifícios, aplaque a rudeza da nossa necessidade.
Aquele pomposo homem, o espírito das luzes de neon, ouviu atentamente o que foi dito por aquele faminto. Por muitos minutos não foi capaz de dizer nada e só fazia olhar fugidiamente a todos aqueles que firmemente o miravam. O silêncio era constrangedor. Nem uma ave sequer teve coragem de cantar naquele momento. Todos estavam atentos à cena seguinte. De repente aquele silencioso momento foi quebrado pelo espírito dos sortilégios ao chamar um de seus funcionários. Ele teve uma idéia:
___ Impostor, venha cá rápido (esse era o nome do seu funcionário). Vê por aí se você encontra alguma coisa para alimentar esse povinho. Nós estamos numa situação muito delicada. Se não fizermos nada, poderemos correr perigo.
Daqueles alimentos que faltavam à multidão, amor e esperança, aquele artífice do torpor já não comia a muito tempo também. Suas ocupações frívolas não lhe permitiam sentar à mesa para comê-los, pois primeiro não os tinha, segundo porque não possuía nenhuma boa companhia para dividi-los. Do amor e da esperança só nos alimentamos juntos e reverentes à pessoa do outro.
Depois de algum tempo chegou seu assecla com a possível solução:
___ Chefe, consegui aqui um pouco de fé. Na verdade a ganhei de algumas pessoas: uma tinha sido curada de uma deficiência física; teve uma mulher que escapou de ser apedrejada; um homem que acabara de ser curado de sua cegueira; uma mulher que há doze anos sangrava; um ex-cobrador de impostos; uma mãe que teve seu filho curado; outra mulher que teve seu irmão ressuscitado; teve até um menino que, percebendo minha preocupação, ofereceu-me seus cinco pães e dois peixinhos. Eu o agradeci, mas não aceitei. Só louco para achar que aquela mísera quantidade de comida resolveria o assunto. Mas trouxe essa quantidade de fé pro senhor. Eu sei que é pouca, mas é melhor que nada, não é?
Aquele homem ficou num grande impasse. Mandou que guardasse aquela quantidade de fé, alegando que não daria para nada. E como ele não possuía nem amor nem esperança, sendo estes normas à solidariedade e ao verdadeiro prodígio da multiplicação para fazer da fé um grande milagre, fez o seguinte:
Comprou toda quantidade possível de fé que havia nas redondezas. E fé vendida, diga-se de passagem, não é boa fé. E a vendeu a todos aqueles famintos por uma grande quantidade de ilusão (Ele se alimenta disso). Como um grande mágico aplicou seu truque e a muitos, senão a todos, iludiu. Aqueles homens e mulheres consumiram toda ma fé que puderam e agüentaram e foram embora tão famintos quanto chegaram àquele lugar, mas sem o perceber.
Aquele grande e pomposo líder, o espírito infame, o espírito antitético à graça, faminto de amor e esperança, somado a uma fé vazia e efêmera, não pode oferecer gratuitamente o milagre, por isso cobrou por ele a preço de uma grande ilusão. É assim que fazem aqueles que prescindem do amor e da esperança: vendem seus próprios milagres.
Fé sem amor e esperança monetariza o milagre e faz do sagrado, profano; faz do infame, honrado; faz do honrado, cativo.
Aquela multidão seguia a passos lentos para suas casas. Foi durante os desafios da caminhada que perceberam que a comida que tinham ingerido – a má fé – não lhes serviu senão de veneno à alma. Estavam extremamente fracos e ainda muito cansados. Alguns desfaleciam pelo caminho e eram, com muito esforço, carregados pelos outros companheiros que mal suportavam o peso de seus próprios corpos. Era de dar dó ver o quanto aqueles seres humanos estavam desfigurados e esvaziados de si mesmos. Pareciam mais um exército de esqueletos abandonados num vale de sombras e ilusão. Cadenciados pela dor, seguiam todos eles pela longa estrada do sem sentido na marcha dos espoliados.
No caminho para suas casas, passo a passo, aquela multidão seguia olhando para o chão. Estavam tão desnudos que se quer tinham coragem ou força pra levantar a cabeça. Cada qual seguia num sofrimento orante na expectativa por algo que se pudesse comer e lenir toda ignomínia que traziam sobre si mesmos. O que de verdade doía era o desprezo e a indiferença experimentada. Havia um grito contido; um clamor silencioso de quem ainda no fundo, lá bem no fundo, acalentava o desejo de ser, não obstante a situação do não ser.
Aquele grande espírito da efemeridade, com suas palavras de morte travestidas de poemas de fé, ferira fundo aquelas pessoas. Para ele elas não passavam de um meio pelo qual atingia seus planos sombrios de poder e glória. Não tinham nomes e nem estórias. O espírito da quantificação reduziu-os a um papel na trama funesta que tecera.
Após algum tempo de caminhada a multidão dos sem vida tropeça com outra multidão. Esta, no entanto, se encontrava em melhores condições do que aquela. Estavam felizes e satisfeitos. Seus semblantes transpareciam, translucidamente, a serenidade a despeito de todo elemento trágico oriundo da vida. Diziam eles que um mestre da sensibilidade os avia alimentado depois que um menino lhe doou alguns poucos pães e peixes.
Então um daqueles padecedores fez uma pergunta:
___ Onde está esse mestre? Como podemos encontrá-lo no meio de toda essa gente? Há milhares de pessoas aqui. Como ele está vestido?
Então veio a resposta.
___ Ele é como eu e você. Não se distingue de nós pelas vestes ou qualquer outra coisa. Ele possuía consigo tanta comida quanto nós. Não trazia consigo nenhum alforje com provisões nem possuía uma grande quantia de denários para que pudesse comprar-nos alimentos. Ele dividira conosco o mesmo espaço e a fome que sentíamos. É um de nós. Mas ao olharmos nos olhos dele e ele nos nossos, irradiou de todos nós amor e esperança. E isso nos bastou. Foi então que um menino oferecendo seus poucos pães e peixes, os deu àquele homem. Mesmo sendo pouco, diante do significante número que éramos, ele deu graças. E como quem recebia uma grande quantidade de alimento de muitas pessoas, foi repartindo, repartindo... repartindo...até que nos saciou completamente a fome.
Aquelas pessoas ouviam atentamente tudo o que estava sendo dito. Suas lágrimas desciam pouco a pouco até que um choro copioso tomou conta daquela multidão. Um caudaloso rio de lágrimas brotou da dor de todos aqueles pobres coitados.
Sentindo na pele aquela dor como se fosse sua própria dor, aquela outra multidão também chorou. De repente uma voz rompe toda aquela lamuria. Era a voz de um menino que vinha sendo acompanhado, de mãos dadas, com um homem que trazia no semblante uma profunda doçura. Não trazia sobre si a figura dos deuses nem a glória dos homens. Na verdade trazia consigo a simplicidade e o anonimato. Contudo, à medida que eles se aproximavam o choro diminuía e pouco a pouco aquelas multidões concentravam sua atenção naquelas duas figuras.
Todos então sentaram e esperaram atenciosamente pelas palavras daquele homem. Ele porém, antes mesmo de dizer-lhes palavra, mandou que seus doze companheiros trouxessem os doze cestos de pães e peixes que sobraram. Ao verem aquela comida, aqueles homens e mulheres que estavam famintos, seus olhos brilharam. Aquele estranho mestre então pede àqueles que já haviam comido, que servissem os que estavam com fome. E seguindo o exemplo aprendido, aqueles homens e mulheres ergueram um pedaço de pão e peixe e deram graças. Reverenciosamente abaixaram suas cabeças aqueles que estavam com fome. E nesse espírito comunitário ocorreu mais uma vez o milagre da partilha. Todos comeram, sobretudo, do amor e esperança.
Aquele dia foi um momento memorável, não pelo fato do pão e do peixe terem sido o bastante para alimentar aquelas pessoas. Mas pelo acontecimento da partilha. Esse é o verdadeiro milagre. Daí então podemos entender que esse mestre não lhes propõe o magnífico, tampouco lhes vende uma ilusão. Só os faz perceber que o grande potencial fraterno que possuem em si mesmos é suficiente para que os verdadeiros e duradouros milagres aconteçam. E que o bom milagre sempre orienta à partilha e a comensalidade, sem os quais não há milagres, apenas ilusão.
Glauco Kaizer

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